"Quem me dera no tempo em que escrevia/ Sem dar por isso/ Cartas de amor/ Ridículas.", diz o poema. "A verdade é que hoje/ As minhas memórias/ Dessas cartas de amor/ É que são/ Ridículas."
É uma edição da Assírio & Alvim (R$ 67,40, 368 págs., importado, na Livraria Cultura) e traz novidades. Além da inclusão de parágrafos omitidos na primeira edição das cartas de Ofélia, o livro inclui duas cartas inéditas da namorada de Pessoa.
Em 2013, como parte da programação do Ano de Portugal no Brasil, a obra será editada em nova versão pela brasileira Capivara. "O nosso livro sairá em maio com cerca de 170 cartas a mais e apresentará as cartas de Pessoa em fac-símile", disse a editora Bia Corrêa do Lago.
Em Portugal as cartas do poeta foram publicadas pela primeira vez em 1978, e as de sua amada ganharam uma edição em 1996.
Bia lembra que no prefácio dessa edição dos anos 1990 se dizia "que apenas 110 das 276 cartas enviadas por Ofélia estavam transcritas". A edição brasileira terá as cartas que faltam nas edições portuguesas e que pertencem a seu marido, o colecionador Pedro Corrêa do Lago.
Apaixonados
Foi em novembro de 1919 que se conheceram, quando Ofélia tornou-se, aos 19 anos, secretária do escritório Félix, Valladas & Freitas, onde o autor de Mensagem trabalhava como tradutor comercial.
Foram trocando bilhetinhos até que em janeiro do ano seguinte, durante uma falta de luz no escritório, o escritor se declarou, citando Hamlet, contará ela mais tarde.
Nesta edição estão as 51 cartas que Pessoa escreveu a Ofélia Queiroz, entre março e novembro de 1920 (na primeira fase do namoro) e entre setembro de 1929 e janeiro de 1930 (na segunda fase).
"Os altos e baixos do 'enredo', as oscilações de humor, os ritmos 'cardiográficos' tornam-se, por assim dizer, mais fáceis de detectar numa edição como esta", acredita a organizadora.
O casal marca encontros secretos, fala de problemas de saúde. E muitas vezes demonstram ciúmes, brincam e falam como se fossem crianças, e Ofélia entra no jogo dos heterônimos do poeta.
Pessoa, no entanto, nunca quis ir à casa dela nem conhecer os seus familiares e também nunca falou da namorada à sua família.
Na carta que o escritor lhe envia para acabar com o namoro, em novembro de 1920, pergunta se ela prefere que ele devolva as cartas acrescentando que preferia conservá-las "como memória viva de um passado morto".
Após nove anos entre a primeira e a segunda fase do namoro, os dois voltam a corresponder-se por causa da fotografia que Pessoa lhe envia, tirada em 1929 num estabelecimento de bebidas de Lisboa, com um trocadilho na dedicatória: "Em flagrante delitro".
Tanto as cartas de Fernando Pessoa como as de Ofélia pertencem, neste momento, a colecionadores.
Por isso, a organizadora teve acesso a fotocópias dos originais, postas à sua disposição pelos herdeiros. As duas cartas inéditas incluídas na edição portuguesa, escritas por Ofélia em julho de 1920, faziam parte do conjunto.
"O motivo da não inclusão na primeira edição foi por vontade dos familiares de Ofélia. Creio que queriam preservar sua memória e evitar que a vida íntima da jovem fosse exposta. Interpretaram talvez erradamente as duas cartas e, por isso, preferiram que não fossem publicadas", explica a pesquisadora.
Em uma dessas cartas, Ofélia diz a Fernando que lhe escreve da cama, de onde não se consegue levantar por estar doente.
Fala de uma "misteriosa doença", e percebe-se que estará relacionada com seu período menstrual, tema ainda tabu na época. No final, ela pede que Pessoa rasgue a carta, coisa que ele nunca fez.
Lidas sem confronto com as da sua destinatária, as cartas de Pessoa pareceram a muita gente "meros exercícios literários", o que explicará a ideia que se perpetuou de que o namoro entre os dois seria apenas platônico.
"Fernando, em geral, era muito alegre. Ria como uma criança, e achava muita graça às coisas. Dizia, por exemplo «ouvistaste?» em vez de «ouviste». Quando saía para engraxar os sapatos, dizia-me: «-Eu já venho, vou lavar os pés por fora». Um dia mandou-me um bilhetinho assim: « O meu amor é pequenino, tem calcinhas cor-de-rosa» Eu li aquilo e fiquei indignada. Quando saímos, disse-lhe zangada: « Ó Fernando, como é que você sabe que eu tenho calcinhas cor-de-rosa ou não, você nunca viu...». E ele respondeu-me assim a rir: « Não te zangues, Bebé, é que todas as bebés pequeninas têm calcinhas cor-de-rosa...»
Vivia muito isolado, como se sabe. Muitas vezes não tinha quem o tratasse, e queixava-se-me. Estava realmente muito apaixonado por mim, posso dizê-lo, e tinha uma necessidade enorme da minha companhia, da minha presença. Dizia-me numa carta: «...não imaginas as saudades que de ti sinto nestas ocasiões de doença, de abatimento e de tristeza...» E mostra-o bem, nesta quadra que me fez:
Quando passo um dia inteiro
Sem ver o meu amorzinho
Cobre-me um frio de Janeiro
No junho do meu carinho
Fernando vivia com o essencial. Todo o resto lhe era indiferente. Não era um ambicioso nem vaidoso. Era simples e leal.
Dizia-me: «Nunca digas a ninguém que sou poeta. Quanto muito, faço versos.»
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