Sobre as Sombras na Aquarela

Tudo começou com as nuvens.

A ideia surgiu da necessidade de mostrar a evolução de uma pesquisa feita sobre monocromia através da técnica da aquarela e colagem.

Foi à partir do meu olhar nas nuvens que surgiu o "momento sombras na aquarela". Após a escolha do suporte, as imagens começaram a brotar em minha mente de forma aleatória, de modo claro e objetivo, facilitando o desenvolvimento do trabalho. O fundo branco do papel, muitas vezes em destaque, realça as nuances e sobreposições das camadas, contrastando tons claros e escuros, assim como a luminosidade, algumas vezes oscilante, mais ou menos intensa, que brinca, sugerindo formas, movimentos e até mesmo sensações, destacando as características da aquarela aliada à colagem.

As inúmeras possibilidades que o tema oferece, associadas à técnica, tráz como resultado a simplicidade da proposta que, destacando a cor pura, em contraste com o papel, evidencia um grande prazer em criar.

Aline Hannun

7 de maio de 2014

Cem anos de Iberê Camargo


"Arte, para mim, foi sempre uma obsessão. Nunca toquei a vida com a ponta dos dedos. Tudo o que fiz, fiz sempre com paixão”. (Iberê Camargo, 1914–1994)

Centenário do pintor Iberê Camargo é celebrado com retrospectiva em SP

"Não há espaço para a alegria", escreveu Iberê Camargo em suas memórias. "Toda obra que tem algum significado tem raízes no sofrimento, nasce da vida que dói."

Esse drama todo, que o pintor dizia trazer na alma, está traduzido em suas telas carregadas de tintas. São composições pesadas, que afogam o traçado das figuras numa solidão azul e profunda.

Esse é o tom das comemorações de seu centenário. Camargo, morto aos 79, há 20 anos, nasceu em 1914 em Restinga Seca, no interior gaúcho. Estudou no Rio, passou uma temporada na Europa, mas voltou a viver em Porto Alegre no final de sua vida.

Uma série de exposições agora celebra a vida e a obra do artista, começando com mostra que está em cartaz na Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre.

Em maio, uma megarretrospectiva no Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, vai reunir 145 obras de todas as fases de sua carreira, com ênfase nos últimos quadros que pintou, a chamada fase trágica do artista.

Isso porque os tons mais frios, de uma natureza menos exuberante e mais emudecida, como a dos pampas gaúchos, nunca saíram de seus quadros -uma obra que resiste a qualquer ideia de brasilidade ou idílio tropical.

Mesmo em suas primeiras pinturas, mais figurativas, a natureza não é representada em chave realista. É recriada em vórtices de cor que lembram experimentos das vanguardas europeias observadas por Camargo em viagens.


Desenho sem título de 1992 feito por Iberê Camargo com caneta esferográfica e nanquim.

Na mostra paulistana, será evidente como essas paisagens se dissolvem ao ponto de virar abstração plena, ou quase plena, já que contornos de alguns objetos aparecem aqui e ali como alicerces de algumas composições.

Entre eles as garrafas, que Iberê Camargo viu nas naturezas-mortas do artista italiano Giorgio Morandi, e os seus famosos carretéis, lembranças da infância que se transformaram em símbolo máximo de sua obra.

Mas Camargo se consagrou mesmo com suas estranhas figuras à beira da morte, que chamou de idiotas em várias telas, e seus ciclistas, nada mais que esses mesmos personagens que se deslocam sobre rodas rumo ao nada.
 
 
"São figuras sem rosto, ao mesmo tempo violentas, brutas e espessas", diz Luiz Camillo Osorio, curador da mostra no CCBB, em São Paulo.

"É como se ele transformasse o corpo decrépito em potência. A finitude é afirmada, não lamentada."
 

"Corpo feminino", obra consagrada no salão de Veneza

MORTALHA COLORIDA

Talvez fosse disso que Camargo falasse quando escreveu que em sua obra não criava "mortalhas coloridas".

Em vez de temer o fim, o artista parecia evocar uma morte gloriosa com todo o peso do mundo e uma certa fúria nos traços.

Nesse ponto, alguns biógrafos do artista já tentaram associar a indefinição de suas figuras ao fato de ele ter matado um homem durante uma briga. Na tentativa de defender sua secretária de um namorado violento, Camargo, que andava armado, acabou dando um tiro fatal nele.

Depois desse episódio e de um breve período na prisão, no começo dos anos 1980, ele deixou o Rio, onde morou boa parte da vida, e se isolou em Porto Alegre para pintar a fase trágica, que marca o retorno da figura humana a suas composições mais abstratas.

 
Fantasmagoria (1987)

Mas não é sobre a morte de alguém que fala o trabalho de Camargo. Na opinião do crítico Lorenzo Mammì, que organizou a mostra agora em Porto Alegre, Camargo fez de sua obra uma afirmação da pintura, uma linguagem que ele então sentia agonizar.

"Ele faz isso com uma pintura muito suja, sobreposta, raspada, quase vulgar", diz Mammì. "Tem a ver com a sua ideia de pintura como arte em decomposição, uma linguagem que vai se desfazendo."
Suas telas em convulsão, de camadas sobrepostas e traços erráticos, influenciaram toda uma geração de artistas que despontou nos anos 1980, com a reafirmação da pintura como técnica.

Nuno Ramos, um dos artistas que então descobriram Camargo, via em suas telas "algo pantanoso". "É a matéria que me atrai nele, uma coisa física", diz Ramos. "Iberê nunca acreditou na morte da pintura. Ele domina essa linguagem. É exuberante."
 

 
CEM VEZES IBERÊ

Porto Alegre:
 Mostra "Iberê Camargo: As Horas [O Tempo como Motivo]", com curadoria de Lorenzo Mammì, tem 22 pinturas e 26 desenhos do artista e está em cartaz agora na Fundação Iberê Camargo (av. Pe. Cacique, 2.000, Porto Alegre).

Em novembro, outra exposição no museu que leva seu nome vai reunir 20 artistas contemporâneos com obras que dialogam com Iberê Camargo.

São Paulo: Em maio, o Centro Cultural Banco do Brasil (r. Álvares Penteado, 112) inaugura megarretrospectiva com 145 obras de todas as fases da carreira de Iberê Camargo.
 

"Tudo te é falso e inútil III", (1992).

“ – Minha contestação é feita de renúncia, de não-participação, de não-conivência, de não-alinhamento com o que não considero ético e justo. Sou como aqueles que, desarmados, deitam-se no meio da rua para impedir a passagem dos carros da morte. Esta forma de resistência, se praticada por todos, se constituiria em uma força irresistível [...]


"As Idiotas", (1991).

"– O drama [...] trago-o na alma. A minha pintura, sombria, dramática, suja, corresponde à verdade mais íntima que habita no íntimo de uma burguesia que cobre a miséria do dia-a-dia com o colorido das orgias e da alienação do povo. Não faço mortalha colorida.

– Por que sou assim?
– Porque todo homem tem um dever social, um compromisso com o próximo.
– Não há um ideal de beleza, mas o ideal de uma verdade pungente e sofrida que é a minha vida, é tua vida, é nossa vida, nesse caminhar no mundo.
– Sou impiedoso e crítico com minha obra. Não há espaço para alegria. É difícil revelar o significado das coisas. O Homem olha a sua face, interroga-se e não sabe quem é".
 

"A Idiota", (1991)

"– Acho que toda grande obra tem raízes no sofrimento. A minha nasce da dor.
– A vida dói [...]”.




"As figuras que povoam minhas telas envolvem-se na tristeza dos crepúsculos dos dias de minha infância, guri criado na solidão da campanha do Rio Grande do Sul."












Nenhum comentário:

Postar um comentário